Para ler a primeiro postagem da série, sobre o momento político português clique aqui
Imagens distorcidas que geram desunião entre povos com tanto em comum
Por Luiz Nascimento*
Dando sequência à série de textos sobre a desmistificação de Portugal, abordarei hoje a questão da imagem que os brasileiros têm dos portugueses e vice-versa. Ambos os lados têm uma imagem distorcida do outro, cada qual com seu motivo. Novamente, quero deixar claro que não tenho a pretensão de ser dono da verdade, mas apenas esclarecer a visão preponderante nos dois países, de alguém que vive no Brasil, mas que já esteve em Portugal e mantém contato com portugueses diariamente. Essa questão da imagem que os brasileiros criam dos portugueses foi um tema lançado a discussão em Portugal há não muito tempo.
Quando a novela da TV Globo, Negócio da China, passou a ser exibida em solo lusitano, os portugueses se espantaram, e alguns até se revoltaram, com a imagem que se tem deles no Brasil. Na novela, uma caricata família portuguesa era responsável pela pitada de humor na dramaturgia. Idosos com forte sotaque, o homem de bigode, caneta na orelha, dono de padaria e chamado Manuel, a mulher também com um nome bem arcaico, vestida de preto, sempre tendo na família um humor nascido a partir da velha premissa do “português burro”. Houve uma grande discussão em torno desta novela, se ela deveria ou não ser transmitida em Portugal.
No ano passado ainda houve outros exemplos, como a revolta do povo português para com a atriz Maitê Proença, que em gravação para seu programa no canal GNT, andou por Portugal fazendo piadas sob a mesma premissa e ainda mostrando um total desrespeito e falta de cidadania, chegando até a cuspir em uma fonte de água no centro de Lisboa e a fazer piada com a estátua de um grande nome português. A atriz, que era respeitada e admirada pelos portugueses, havia lançado seu livro em Portugal pouco tempo antes. Toda a boa imagem caiu por terra e a revolta foi geral, sua reportagem acabou sendo exibida nos principais jornais televisivos de Portugal e ela foi obrigada a pedir desculpas publicamente.
Cito estes exemplos pois grande parte da imagem que os portugueses têm dos brasileiros vem da mídia. Há anos que as principais telenovelas brasileiras são transmitidas por lá. Antes a TV Globo possuía uma penetração razoável em Portugal, agora é a TV Record que possui mais representatividade brasileira em solo luso. Ou seja, a imagem que os próprios brasileiros constroem de si mesmos é reproduzida por lá, e nesse bolo todo sempre espirra um pouco da imagem que se tem dos portugueses e de Portugal por aqui. Assim como parte dessa imagem que os lusos possuem dos brasileiros vem da mídia, outra parte vem do grande número de imigrantes brasileiros que vivem e trabalham em Portugal.
Imigração, mídia e alguns detalhes
Há milhares e milhares de brasileiros que imigraram a Portugal nos últimos anos. Os lusos possuem três imagens distintas e bem definidas. Obviamente, há aqueles que desferem seu preconceito pelo simples fato de serem imigrantes “roubando” emprego e espaço, dificultando a já complicada situação econômica de Portugal. Por outro lado, há também os que enxergam com bons olhos esses imigrantes, afinal os portugueses possuem uma vocação natural e histórica muito grande na imigração, um assunto que abordaremos em outro texto. Alguns são vistos com muito brio, como trabalhadores corajosos em busca de uma vida melhor. E há, por fim, os que têm também uma visão negativa pelo fato de haver muitos brasileiros na Europa, e também em Portugal, envolvidos no crime e principalmente na prostituição. Homens, mulheres, travestis e etc.
Enfim, em Portugal a visão do Brasil é tida tanto pela mídia, algo construído pelos próprios brasileiros, como pelos imigrantes tupiniquins que lá residem e também pela imagem histórica que o Brasil possui do exterior, muito discutida por aqui.
Já no Brasil, temos algumas frentes bem mais fortalecidas e amplas. Em primeiro lugar, o preconceito para com portugueses é histórico. Nos primeiros anos de vida, na formação, mais precisamente na escola, os brasileiros são educados no sentido de terem Portugal e seu povo como os vilões responsáveis por grande parte dos problemas que o país encontra ainda hoje. Grande parte dos brasileiros é educada no sentido de ter aversão a portugueses, generalizando uma imagem que costumeiramente os colonizados constroem dos colonizadores.
Em segundo lugar, há algo praticamente cultural. A questão das piadas envolvendo portugueses representam grande parte do preconceito brasileiro. Piadas sobre “portugueses burros” já são históricas, naturais e estão enraizadas na cultura brasileira. Por um lado pode parecer exagero chamar isso de preconceito, mas quando se está do lado dos imigrantes portugueses no Brasil, que não são poucos, percebemos o grau de preconceito envolvido nesta “prática”. Nas últimas semanas uma grande polêmica vem chamando a atenção da comunidade portuguesa no Brasil, mais precisamente em São Paulo, envolvendo justamente esta forma de preconceito.
Bolinho de bacalhau árabe e indigesto
O Habib's, empresa de alimentação que dispensa apresentações, lançou mais uma linha de produtos típicos de Portugal, como bolinho de bacalhau, pastel de Belém e etc. A propaganda destes produtos vem sendo alvo de críticas de vários portugueses que se sentem ofendidos. Panfletos distribuídos nas lojas da empresa em todo país contêm frases do tipo: "Como se chama um homem inteligente em Portugal? Turista”, "Qual é o único português que serve para alguma coisa? O Manuel de instruções" e por aí vai. No final de tudo, lê-se o seguinte: "As piadas são uma homenagem. Afinal, o dono do Habib's também é português".
O Instituto Brasileiro de Estudo e Defesa das Relações de Consumo afirmou que recebeu pelo menos dez denúncias de pessoas que se sentiram ofendidas pela propaganda. "Trata-se de discriminação contra o consumidor", disse o presidente, José Geraldo Tardin. Ele afirmou que entrou com representação no Conar (conselho de autorregulamentação publicitária).
Alguns podem achar um exagero considerar piadas do tipo como preconceito. Porém, imaginem que um português, ou até um descendente, entre em uma loja do Habib's e se depare com tais folhetos, lendo tais piadas. Imagine ainda este português, com sotaque natural, fazendo seus pedidos na loja. Se nos colocarmos no lugar dos portugueses frequentando o estabelecimento, percebemos que é sim preconceito, que há quem sofra com estas “piadas”. E isso não é difícil de acontecer, só em São Paulo estima-se que há mais de 1 milhão de portugueses e filhos de lusos. Se fossem piadas contra negros, homossexuais, ou até judeus, será que o assunto seria tratado como natural? É tão diferente assim?
Outro absurdo está na explicação de que eles se acham no direito de fazer “piadas” com portugueses por terem no comando de sua empresa um português. Então quer dizer que um negro pode discriminar outro negro? Tais piadas, ou melhor, a divulgação das mesmas tentando torná-las naturais, apenas faz com que o preconceito seja reforçado e tratado como algo corriqueiro, não sendo encarado como preconceito propriamente dito. Ou seja, é algo perigoso.
Caricaturas
Mudando um pouco o foco das imagens que os brasileiros possuem dos portugueses, deixando um pouco de lado esta imagem criada já na educação nacional, nas escolas, nos livros de história, e também esse estigma de “português burro”, entremos no ponto da caricatura. A partir do contato que as últimas gerações de brasileiros têm e/ou tiveram com portugueses, formou-se uma imagem obsoleta dos lusos. Sabe-se que grande parte da enorme concentração de portugueses no Brasil se dá em São Paulo e no Rio de Janeiro, são os famosos “portugueses da diáspora”, que chegaram ao Brasil no século passado, principalmente na primeira metade do século XX.
Milhares de portugueses chegaram ao Brasil principalmente entre as décadas de 1930 e 1960, que hoje são pais e avós de muitos brasileiros. Portugueses que deixaram seu país em meio a ditadura salazarista, ou por esse motivo, ou pela histórica vocação imigrante. A imagem de portugueses donos de padaria, que tomam vinho e comem bacalhau, bigodudos, com caneta na orelha, chamados Manuel, Joaquim ou Maria, que adoram fado e vira, vem dos portugueses desta época. Esta imagem arcaica, obsoleta, retrógrada de um Portugal que quase não existe mais.

Muitos brasileiros ainda têm uma imagem assim dos portugueses. Sem generalizar, claro. Portugal mudou muito deste tempo para cá. É óbvio que esta imagem era verdadeira à época, algo característico, que até entrou para a história e cultura lusitanas, mas é algo passado. Falamos hoje de um Portugal evoluído, globalizado. Há de tudo, não apenas bacalhau e padarias. Há pessoas de todos os nomes, não apenas Manoéis e Joaquins – apesar de serem muitos ainda. Falamos de um país como qualquer outro neste aspecto. Essa imagem demasiadamente caricata é uma das facetas daquilo que muitos brasileiros entendem por Portugal e seu povo.
Enfim, a partir de ambos os lados encontramos imagens distorcidas, que não representam a realidade e que tendem a reforçar preconceitos. Portugal e Brasil possuem muito em comum, principalmente a língua – que também será tema de um próximo texto – que deveria unir esses povos, e não distanciar e criar discussões preconceituosas e discriminatórias. Há muitos brasileiros e muitos portugueses que possuem uma imagem mais verdadeira e respeitosa uns dos outros, mas ainda nos deparamos com muitas discussões – em fóruns da internet principalmente – calcadas em preconceitos bestas e sem fundamento, sobre ideias e imagens irreais, caricatas, que em nada tendem a acrescentar.
Temos de dar importância às imagens distorcidas sim, por menores e mais insignificantes que possam parecer, pois falamos de duas nações que poderiam se relacionar de forma fraterna em todos os sentidos. Falamos de dois países com muito em comum e que podem crescer em conjunto, sob todos os aspectos. Ambos os países e ambos os povos ainda não perceberam a força que a língua em comum possui e o que poderia ser feito a partir dessa relação tão próxima, porém, também tão distante.
* Luiz Nascimento – Estudante de jornalismo, brasileiro de nascimento, com nacionalidade portuguesa. Ligado à comunidade portuguesa de São Paulo, neto de imigrantes lusos e sempre em estreito contato com Portugal.
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