"Mad Men": a história, a roda e o carrossel
Se o jornalismo é o coração do sistema de reprodução ideológica do capitalismo, a publicidade é o cérebro. Se alguém achar que os papeis estão trocados, tudo bem. Não fará grande diferença para o que vem abaixo, uma leitura da série de TV “Mad Men”, exibida no Brasil pela HBO, mas que faz muito mais sucesso em DVD e nos arquivos baixados pela web.
A série começa em 1960 – ou seja, ainda na década de 1950, com insistem os jornalistas que acreditam que as décadas começam no ano 1 e terminam no ano 10, seguindo, claro, o calendário ditado pela Igreja Católica. Mas para a publicidade, estamos já com o pé no futuro, ou seja, a década de 1960, porque neste mundo o que conta é o novo.
E o que é novo em “Mad Men”? Primeiro, a linguagem realista. O texto e os personagens são construídos em busca de uma forte verossimilhança. Há um cuidado evidente na definição das faixas etárias em contato, dos espaços masculinos e femininos, um apego muito acima do comum para projetos televisivos em relação a “detalhes” como figurinos e marcadores de tempo.
O primeiro episódio da série (que já teve quatro temporadas completas) é, neste sentido, impressionante. A presença do cigarro e da bebida alcoólica é abusivamente explicitada, e, até mais que o figurino, funciona com um elemento de delimitação temporal. Cada personagem que aparece em cena acende um cigarro, em espaços onde hoje já não se imagina ninguém fumando, pelo menos no hemisfério ocidental: cinema, ônibus, banheiro, elevador, no consultório do ginecologista.
O cigarro está em todo lugar. A bebida, em quase todo. Num episódio bem à frente, uma criança, filha do protagonista, toma um copo de uísque e dorme, enquanto estava sendo “cuidada” por secretárias distraídas. Ele percebe, pega a criança no colo para levá-la para casa e dirige-se a elas, sem nenhuma ironia: “Bom trabalho, meninas”.
Leia também:
Huffington Post: é jornalismo, internauta
O consumo pornográfico de Sex and the City
'A Queda e suas versões': comunismo da forma, capitalismo do conteúdo
O mundo sem Jack Bauer
House esculacha a ditadura da ética
O espaço central da trama é a sede de uma agência de publicidade, onde gravitam os personagens centrais, onde eles mais fumam e mais bebem. E onde, de certa forma, o “futuro” está ganhando seus slogans e imagens. Neste espaço, as mulheres são todas secretárias, e os homens, os chefes, que tomam suas decisões em salas confortáveis, cheias de sofás e uísque. Mas isto vai mudando aos poucos, e Peggy (Elizabeth Moss) vai representar a mudança, conquistando, não sem sofrimento, mas com muita decisão, novos problemas, cargos e salários.
As novidades do tempo se apresentam: o personagem principal, Don Draper poderia ser um herói da Guerra da Coreia (seu chefe é da geração da Segunda Guerra Mundial), caso não tivesse roubado a identidade de seu tenente no campo de batalha. Mas isso não importa, ensina o dono da agência ao jovem arrivista que tenta usar a informação para derrubar Don (interpretado por Jon Hamm). Ninguém mais quer saber desta guerra.
A guerra que conta (ainda não há a escalada do Vietnã, mas ela surgirá nas temporadas seguintes) é a da conquista de novos consumidores, e neste espaço, Don, um conquistador de belas mulheres, todas fumantes, será ainda mais importante. Ele seduz, explica, convence os clientes de que a publicidade é que faz o negócio. Que, como a galinha, ela surgiu antes do ovo. Ou vice-versa.
Há uma cena emblemática do papel da publicidade na criação de necessidades. Uma empresa conhecida (não vou citar o nome de quem pode pagar para fazer propaganda, e pelo jeito pagou caro para fazer parte da trama de “Mad Men”) tem um novo produto, um projeto de slides que utiliza um mecanismo chamado internamente pelos diretores e projetistas de “a roda”. Don está escalado para apresentar a publicidade deste novo produto. O diretor da empresa comenta as dificuldades da empreitada, mas lembra que a roda, embora não seja uma tecnologia nova, é excitante.
Don explica que, normalmente, fazer publicidade de um novo produto é relativamente fácil. A empresa chega com algo novo, que preenche uma necessidade. Você anuncia a novidade, e a publicidade informa as pessoas de que elas tinham uma necessidade que não conheciam, mas que acaba de ser preenchida. E as vendas começam.
“Mas há vezes”, explica Don, que um novo produto estabelece uma relação mais profunda com o público, que não é a relação da novidade – já havia projetores de slides no mercado –, mas a da “nostalgia”. O novo lembra que há um passado que deixou saudades. “Esse dispositivo é uma nave espacial”, explica ele. “É uma máquina do tempo”. Seu nome, portanto, não deveria ser “roda”, mas “carrossel”, como esses com que brincamos todos nos parquinhos. Quem já viu um projetor de slides desse sabe que as imagens eram colocadas no carrossel, jamais na roda.
Divulgação

Série ambientada em 1960 retrata o cotidiano de uma agência de publicidade norte-americana
“Mad Men” é, de longe, a série de TV que mais se parece com os grossos livros que a tradição realista do romance nos deixou. Ela remete a um período de ascensão profissional feminina, ao início da liberação sexual trazida pela pílula anticoncepcional, ao boom econômico das décadas de pós-guerra e ao ciclo que se encerrará com a crise do petróleo na década de 1970.
Há um clima de liberdade contida pela tradição, da força da política de perseguição à esquerda norte-americana, e os avanços são muitas vezes “explodidos” com a mesma violência com que a cabeça de John Kennedy foi feita em pedaços por um atirador. As ilusões daquele tempo são como o amor, na definição de Don Draper – algo que os publicitários inventaram para que as mulheres comprem mais.
Pode parecer, mas Don Draper não é cínico, e é por ele que torcemos – contra sua mulher histérica (Betty, vivida por January Jones), contra o passado que o intimida, contra a burocracia do Estado, contra a fofoca do escritório, contra todos os males. O homem que parece ter saído de um anúncio, capaz de dobrar seus adversários arrivistas e reverter essa energia em seu favor. O publicitário que faz chorar a sala de reuniões. Mas não se engane: quando mais achamos que ele é o cara, Don nada faz diante da demissão de um ilustrador homossexual (enrustido) que não dormiu com o cliente para salvar uma conta milionária.
Porque neste mundo realista estão todos loucos. Porque neste mundo realistas todos precisamos estar loucos.
Porque neste mundo realista a violência da roda da história só é aceitável se acreditarmos sincera e ingenuamente que ela é um carrossel.
Haroldo Ceravolo Sereza é jornalista e diretor de redação dos sites Opera Mundi e Última Instância.
Nenhum comentário:
Postar um comentário