Acompanhando os tuítes do Diego Calazans sempre enriquecedores e fomentadores de debates inteligentes, pedi a ele que escrevesse sobre a "pauta" do momento: o Estado laico e políticos "teocratas". Vale a pena! Comentem. Vamos estimular a discussão.
O Estado laico e os políticos nem tanto
por Diego Calazans
Segundo o sociólogo francês Émile Durkheim, o papel fundamental das religiões seria a separação, no universo compartilhado pelos membros de uma sociedade, entre a esfera profana e a sagrada. A dimensão profana é a área onde normalmente ocorre a vida social, está ligado ao cotidiano e ao previsível. Por sua vez, o sagrado é uma região nebulosa a partir da qual potências menos conhecidas agem ameaçando a regularidade das relações comuns. Caberia a pessoas especiais – geralmente os sacerdotes e os magos – a tarefa de negociar com as potências assombrosas do sagrado para garantir não apenas a manutenção da previsibilidade do mundo cotidiano como também benefícios que não podem ser obtidos pela manipulação de elementos mais conhecidos.
Com a modernidade, pouco a pouco a dimensão profana da existência social foi se expandindo, graças em grande parte aos avanços das ciências, relegando o sagrado a uma dimensão cada vez mais distante dos problemas comuns. Obviamente, nem todos os indivíduos compactuavam com esse afastamento do sagrado. Não raros voltaram suas costas às definições científicas e abraçaram suas convicções míticas com uma fúria pouco vista. Formou-se um enclave. De um lado, uma pressão para a redução cada vez maior do espaço do sagrado, até que ele foi confinado à esfera privada chegando a ser simplesmente obliterado por alguns. De outro, a resistência ferrenha dos que se recusavam a recolher suas crenças à inviolabilidade de seu lar e procuravam forçar o sagrado na direção contrária tentando garantir que suas crenças não deixassem de se tornar a matéria prima das leis civis. Esse conflito segue em nossos dias, dividindo seus partidários segundo seu entendimento de qual deve ser a relação entre a religião hegemônica (em nosso caso, o cristianismo) e o Estado. De um lado, o chamado laicismo defende a privatização do domínio religioso para que seja possível gerar um espaço público onde indivíduos de diferentes posturas religiosas não se enfrentem pelo monopólio da legítima relação com o sagrado. De outro, os teocratas lutam para que sua religião assuma o controle da máquina estatal construindo suas leis a partir dos princípios caros àquela. A maioria dos Estados nacionais está no meio termo entre essas posturas. Ainda que defendam formalmente o laicismo, flertam – e não raro trepam – com a teocracia em nome dos votos.
No Brasil, vivemos uma situação semelhante à maioria dos países de hegemonia cristã. Se, por um lado, nossa Constituição define nosso Estado nacional como laico, por outro a prática política cotidiana está longe do ideal da laicidade que deveria nos nortear. Digo “deveria” porque o Estado laico é o único capaz de garantir liberdades fundamentais que estão na base de qualquer democracia moderna, entre elas a liberdade de culto, a liberdade de pensamento e a liberdade de expressão. Apenas o Estado laico admite a troca contínua entre a sociedade civil e as instâncias legais para modificar as leis de acordo com transformações na sensibilidade comum. Em países teocráticos, as leis estão vinculadas a preceitos religiosos. No caso das teocracias baseadas em religiões do livro, as leis são as mesmas aplicadas em contextos históricos diferentes, com prescrições de séculos passados servindo de base para punições contemporâneas. As sociedades modernas estão em contínua mudança, demandando que as leis do Estado moderno estejam abertas a reformas recorrentes. Isso só é possível em Estados laicos.
Somente o Estado laico garante o avanço das ciências sem que restrições religiosas impeçam investigações que ponham em dúvida suas concepções dogmáticas. Somente o Estado laico pode garantir a igualdade das mulheres em relação aos homens, uma vez que os teocratas – ao menos os cristãos, que é os que nos interessam aqui – tendem a estabelecer a superioridade “natural” dos homens sem dar margem para que as mulheres reivindiquem seus direitos sem risco de sofrerem punições exemplares segundo leis concebidas em outro continente há milênios. Somente o Estado laico pode garantir a igualdade racial como ficou claro durante os primeiros séculos de nossa História, quando a religião oficial legitimou a desumanização de seres humanos por conta de sua cor a partir de concepções teológicas difíceis de serem rebatidas porque vinham revestidas do caráter de verdade revelada. Somente o Estado laico pode garantir o direito à livre orientação sexual, uma vez que a religião hegemônica trata qualquer comportamento sexual que fuja a seu modelo estreito como passível de punição.
As vantagens do Estado laico sobre seu concorrente teocrático são incontáveis. Não nos deteremos a explicá-las aqui. Mais importante é considerar os atentados contínuos à laicidade do Estado que partem de indivíduos pagos pelos cidadãos para representá-los dentro do Estado laico. Os casos mais recentes envolvem deputados cristãos realizando declarações racistas e homofóbicas em redes sociais e em emissoras de TV – nesse último caso, lembremos, concessões públicas. O primeiro deles é o infame militar reformado Jair Bolsonaro (PP/RJ). Conhecido por sua defesa aguerrida da ditadura militar e suas frases marcantes como “o problema foi ter torturado e não ter matado”, sobre os prisioneiros políticos do período militar, ou “quem gosta de osso é cachorro”, essa última em direção a manifestações que exigiam a localização das covas onde foram enterrados os guerrilheiros do Araguaia. Em declaração recente exibida no programa CQC, Bolsonaro respondeu à cantora Preta Gil que nenhum filho seu namoraria com uma mulher negra porque foram todos “muito bem educados” e que tal relacionamento seria promiscuidade. Houve grande alarde e o deputado voltou atrás dizendo que havia ouvido errado e que entendera que Gil lhe perguntava sobre um namoro gay, não inter-racial. Homofobia não é crime no Brasil, racismo sim. Por isso evitar a todo custo ser considerado racista. Bolsonaro aproveitou para voltar a atacar os gays, como sempre fez, e se aproximou conscientemente de um tipo de eleitor que não é muito afeito ao princípio da laicidade. Ele não é o único.
O segundo deputado a dar declarações polêmicas recentemente foi o deputado Marco Feliciano (PSC/SP). De um partido que já traz “cristão” no nome, o político é pastor da Igreja Assembléia de Deus. Representa um eleitorado evangélico que tem ganhado força e voz. Parece não conseguir conciliar suas funções de sacerdote e deputado. No twitter, fez um comentário associando o que ele considerava como as mazelas do continente africano a uma suposta maldição lançada por Noé à descendência de um de seus filhos, por um suposto ato homossexual; e esse filho amaldiçoado viria a ser, segundo o deputado-pastor, o antepassado de todos os africanos. Feliciano mesclou em sua declaração fartas doses de racismo, homofobia e discriminação de religiões não-cristãs. Quando questionado por suas posições, assumiu postura de vítima e disse ter sido até mesmo ameaçado de morte – mas não apresentou as tais ameaças. Tanto Feliciano quanto Bolsonaro se opõem firmemente à criminalização da homofobia. Seus “argumentos” contra os gays são todos de origem religiosa. Em um Estado verdadeiramente laico, esses “argumentos” sequer são cabíveis, uma vez que toda contribuição política deve ser feita a partir de preceitos válidos para todos os indivíduos e não apenas para os adeptos de determinado culto. Em outras palavras, não é possível obrigar quem não segue determinada a crença a obedecer as regras da crença em questão. É um princípio básico do Estado laico.
Os ataques teocráticos aos gays seguem numerosos, como uma afronta à constituição que determina o afastamento entre Estado e religião. Recentemente, cristãos fanáticos derrubaram o site de uma importante associação brasileira de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros (doravante denominados GLBT), espalhando mensagens homofóbicas e de apoio ao deputado Jair Bolsonaro. Uma das frases pede Bolsonaro como presidente do Brasil. Assustador. Infelizmente, os ataques virtuais ao movimento gay não pararam aí. Um dos filhos de Bolsonaro, vereador do Rio de Janeiro pelo mesmo partido do pai, postou no twitter um link levando para uma suposta mensagem pró-pedofilia que teria sido escrita por um importante militante do movimento gay – apresentado erroneamente como propositor da lei anti-homofobia. Bastou uma checada no Google para ver que a mensagem era falsa, construída por fundamentalistas cristãos para associar o movimento gay à defesa do abuso sexual de crianças de modo a fomentar o ódio pelos GLBT. Um dos caluniadores chegou a afirmar que as crianças seriam “o próximo alvo dos homossexuais”. Esses exemplos são mostras claras de como um movimento religioso fanático pretende interferir de modo ilegítimo em um tema cuja discussão deve ser feita dentro dos preceitos do Estado laico.
Para completar, um site anunciando um novo partido a se formar pôs vários defensores do Estado laico em alerta. O partido tem por nome oficial “Partido Republicano Teocrata Cristão” e defende a abolição de todas as leis vigentes para que sejam substituídas pelas leis estabelecidas na Bíblia. Em outras palavras, o partido propõe o fim total do Estado laico e a criação de um Estado teocrático no Brasil. Deixo aos leitores o desprazer de fuçar no blog do PRTC suas propostas para o país – que envolvem até mesmo a pena de morte para o sexo fora do casamento, o homossexualismo e a crença em outra religião.
O simples fato de tal proposta existir, associado às declarações e atos de fanáticos religiosos que lutam para impor seus preceitos aos infiéis, deveria acender uma luz alaranjada, quase vermelha. O Estado laico é uma conquista imprescindível da modernidade. Não podemos abrir espaço para que ele seja questionado e a religião hegemônica volte a ser a religião oficial, como nos tempos pré-republicanos. Ainda não temos um Estado plenamente laico, como pode ser visto nas declarações políticas carregadas de tons teológicos, nos feriados religiosos serem sempre católicos, nos acordos com o Vaticano, na educação religiosa nas escolas públicas ser sempre cristocêntrica, no fato de padres serem chamados para benzer obras públicas, nas concessões de emissoras de rádio e televisão a missionários cristãos etc. Contudo, isso deve nos instigar a corrigir os resquícios de teocracia que enlameiam nossa política. Para tanto não basta tirar símbolos cristãos de espaços estatais; é preciso também garantir a pluralidade religiosa – não a pluralidade cristã, com suas inúmeras denominações disputando por almas, poder e dinheiro, mas a pluralidade real, colocando religiosidades não-cristãs no mesmo nível de participação das cristãs. O Estado brasileiro deveria investir na divulgação de religiões não-cristãs, particularmente as não-abraâmicas, as que não possam ser traduzidas pelos cristãos como protocristianismos. Quanto mais religiões inconciliáveis estiverem disputando de igual para igual a convicção dos devotos, menor a chance de que uma delas se torne hegemônica e atente contra o Estado laico para se tornar a religião oficial. Somente o pluralismo religioso garante a liberdade religiosa e o Estado laico que possa sustentar tal liberdade.